sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Hammond sobre a coreografia da condução no trânsito

Ele estava, sem qualquer dúvida, furioso; brutalmente zangado, capaz de grande violência – um adulto cheio da mesma raiva estúpida e desprezo irreprimível de um rufia de dez anos. Temi pelo outro homem – isto podia correr mal, e quem sabe o que o rufia iria fazer? E quando pensei que isto ia tudo detonar e dar para o torto, a situação foi salva. Chegou mais alguém, cheio de atenção e boa educação e, deslizando serenamente pelo meio da situação instável, dissipou todo o perigo. E ninguém saiu do carro nem trocou insultos.
Toda esta tensão foi silenciosa, para além da expressão vocal limitada dos motores dos respectivos carros. O rufia tinha rosnado ao volante do seu carro, mas a distância e a posição do Sol impossibilitaram a comunicação facial da sua fúria à vítima no carro da frente. Ele não tinha abalroado o outro, e nem sequer tinha buzinado ou gritado com a cabeça fora da janela, mas eu reparei, enquanto via esta autêntica peça, que ele tinha transmitido claramente que era o canzarrão, e que não tinha qualquer problema em aniquilar o cãozinho, de forma a mostrar a toda a gente que exigia respeito. Por sua vez, o tipo da frente também transmitiu claramente a sua resposta. Um carro não tem cauda, mas juro que aquele a tentou meter entre as pernas de trás. Um carro não pode arquear os ombros e encolher‑se, mas este fê‑lo, esboçando pequenos movimentos desconfortáveis, e travagens constrangidas enquanto se aproximava da rotunda, seguidos de olhares experimentais e nervosos para o trânsito que se aproximava.
Não foram os próprios carros que contaram esta história: o rufia estava num monótono e totalmente comum hatchback – um Honda, acho eu – e a vítima estava num carro apenas ligeiramente mais pequeno, um Peugeot 207. Não foi, portanto, a diferença de tamanho, nem sequer o estilo visual, que enviou todas estas mensagens, mas sim a forma como conduziam, a sua linguagem corporal. E ao ver isto, pergunto a mim mesmo porque é que nunca tomou forma: o bailado automóvel. Não sou um amante das artes (vivo em Ross-on-Wye e restauro Land Rover antigos), mas ao assistir à comunicação complexa entre estes dois condutores durante a batalha delicada, quero ver mais, quero ver uma exploração mais séria deste incrível meio de expressão. E não foram executados movimentos teatrais, como piruetas, reviravoltas nem acrobacias. Como microexpressões, os movimentos mais pequenos e aparentemente insignificantes revelam os pensamentos, mensagens e intenções de alguém. Há algo de profundo na forma como um carro se aproxima de um cruzamento, onde se posiciona, se vira devagar ou rapidamente, se acelera ou trava energicamente; tudo isto pode ser feito de forma puramente robótica ou com alma e sentido. E penso que a maioria das vezes é com alma e sentido. Todos nós somos intérpretes.
Claro que esta nova companhia de bailado automóvel vai precisar de um palco, mas já existe um – as estradas onde conduzimos. As performances seriam desempenhadas em contexto, para uma audiência envolvida. Seria incrível assistir, durante a viagem diária para o trabalho em Londres, a um bailado sobre amor, perda ou rivalidade desempenhado por três Astras e um par de Clios, mas sem quaisquer ilegalidades nem conduções perigosas. A rádio local poderia contar à audiência um pouco da narrativa, e os subtis movimentos dos carros transmitiriam um amplo escopo de emoções e significado. Teríamos um Smart Coupe no papel principal de uma cisne fêmea que ama sem ser correspondida, desprezada pelo objecto da sua paixão – um belo mas estúpido Monaro – perseguido pela M4 e depois pela A329M abaixo, para Bracknell, por duas galinholas perturbantes, interpretadas por dois tipos em Astras cinzentos. Ao assistir a este magnífico espectáculo até o dia começava melhor. E os intérpretes não seriam pagos porque desempenhariam os papéis enquanto se deslocavam para o trabalho.
Também vou compor uma peça a solo – será sobre um marinheiro que volta do mar e descobre que a mulher fugiu com um amigo e que a sua casa foi alugada a uma família de padeiros –  e interpretá-la. Incluirei uma secção comovente em que o marinheiro reflecte sobre os seus anos no mar e o abismo que isso colocou entre a vida em terra e a vida no mar. Comunicarei raiva, tristeza e arrependimento com a minha condução. Se me encontrar, tenha paciência: a interpretação será, de início, rude. Mas quando a polir, será algo belo.

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